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abjeto

Publicado em 26/05/2025

abjeto

desenho: desejo de afeto, devora-me (2019, eu acho)


venho refletindo muito sobre o abjeto, aquilo que nos causa repulsa. essa abjeção sempre esteve presente no meu imagético, nos meus desenhos desde a adolescência. eu mesmo, por muitas vezes, me sentia repulsivo e com isso vinha a necessidade de retratar esse "gore" que se manifestava dentro de mim.


esses horrores me causavam frustração, logo vinha a vontade de me limpar, tomo banhos longos até hoje.


trago uma breve explicação do significado de semiótica: ciência que estuda os signos e os processos de significação em todas as linguagens e sistemas de comunicação, incluindo as linguagens verbais e não verbais.


tudo começa com o contato com a minha sujeira através das sessões de terapia com meu psicólogo, citando tantas vezes sofia favero e sua psicologia suja decidi, por provocação à mim mesmo e a toda higienização que me permiti ser submetido por tantos anos, mergulhar de cabeça e me deitar com essas pessoas nessa cama suja.


iniciei com preciado em seu livro "sou o monstro que vos fala", nesse livro - que na verdade é um discurso para uma conferência sobre mulheres na psicanálise que ocorrera na frança - preciado desmonta, e posso dizer que com muita elegância, os argumentos da psicanálise que constituem a ideia da diferença sexual e mantém a identidade cis/hétero como normal, saudável, higiênico e, por consequência, coloca a transexualidade - ou como prefiro dizer: o dissidente à esse sistema da diferença sexual - como o patológico, o que precisa ser sujeitado a tratamentos e ser corrigido, readequado, higienizado. interessante, não é?


foi lendo esse livro, e também em decorrência a tantas conversas sobre filosofia com a minha amiga - também historiadora, filósofa e escritora, que entendi que tudo isso se trata de uma disputa de linguagem, é através da linguagem que criamos os processos de subjetivação, isto é: o processo de se tornar sujeito, de adquirir uma subjetividade, de se tornar individual e único. é a construção do "eu". e é aí que a definição de semiótica entra também.


quando citei os meus banhos longos no início deste texto fiz um jogo semiótico. afinal, o que te faz sentir vontade de se limpar todos os dias? de esfregar até não haver mais marcas no corpo? do que temos nojo? o que nos causa repulsa? o que nos causa ânsia de vômito, arrepios, vontade de desviar, de atravessar a rua, ou até de esconder?


o ano é 2025, quando ando com amigues pelo centro de são paulo em nossas explorações vejo diversos caminhões de "limpeza urbana" jogando água pelas calçadas envoltas a praça da sé e funcionários públicos com esfregões nas mãos. a catedral, que é um ponto turístico da cidade, sempre se mantém limpa mesmo que os insistentes pixadores tentem deixar suas marcas imundas por volta dela, os policiais fazem a contenção desses danos, dessas ameaças à um patrimônio cristão e espiritual tão respeitado na cidade, funcionam quase como dedetizadores.

a ironia de caminhar pelo centro de são paulo sob a gestão fascista que temos hoje é conseguir com um simples exercício de observação identificar o que está sendo comunicado, não é necessário que falem em voz alta ou que dêem discursos em palanques para milhões de pessoas - embora isso seja feito e normalizado com alguma frequência. o número de sedes de dedetizadores, digo, policiamento pela cidade cresceram absurdamente, vemos caminhões de "limpeza urbana" jogando água debaixo de viadutos onde antes haviam pessoas em situação de rua se abrigando, vemos muros sendo levantados em volta da cracolândia, arquitetura hostil por todos os lados. se isso não te comunica algo, deveria.


viver em uma cidade tão desigual e ter uma família que viveu a dissidência em suas peles decorrente a miséria que nos é submetida pelo estado me permitiu notar as dicotomias: limpeza e sujeira depende do lugar em que você está, do bairro em que vive, da cor da sua pele, da textura do teu cabelo, da sua classe, sua sexualidade, sua performance de gênero. tudo isso marca se você será olhado com nojo alguma vez na sua vida, se merece ou não a dignidade branca e cisheteronormativa que vive nas salas esterilizadas dos bairros nobres da cidade, um deles até carrega em seu nome o seu significado: higienópolis. quando recebi meu primeiro vale refeição fiz questão de parar em uma cafeteria em um bairro nobre de são paulo para comprar um brownie e um café, eu precisava marcar ali naquele lugar que é possível que a gente manche essas barreiras que nos foram impostas.


ao finalizar o livro de preciado, que me ajudou a compreender parte da patologização implicada à minha identidade, quis seguir o processo de entender essas linguagens que me subjetivaram até os dias de hoje. oras, é isso mesmo que você leu, nós somos subjetivados pelas linguagens que nos cercam, a forma em que elas são institucionalizadas e aplicadas diariamente, entendeu? pronto, foi a partir daí que iniciei de vez o meu processo de monstrificação.


ja me sentia um monstro desde muito cedo, pude me identificar com vários deles e seus diversos tipos - é interessante, e um tanto irônico, como os monstros podem ser diversos e os seres humanos nem tanto. quando iniciei a leitura do livro de sofia favero ja havia compreendido que muito do que senti por boa parte da minha vida foi introjetado em mim por forças externas, das quais não tinha controle e muito menos conhecimento e força para lutar contra. a culpa, a raiva, o sentimento de injustiça, de rejeição, de me sentir essa criatura repulsiva, sem lugar no mundo e cheio de sentimentos ruins era o abjeto dentro de mim que precisava ser visto e acolhido, e não repelido. mas é claro que não queria me sentir assim, a normatividade nos seduz porque parece mais fácil, e é mais fácil, se você aceita o monstro é necessário que você lide com todas as suas contradições e complexidades, suas falhas, suas sombras, seus dejetos e desejos.


eu já estava em ebulição, meu sangue fervia como se tivesse esquecido um bule de chá com água no fogão, sofia instigou essa raiva e, em certo ponto, pode me ajudar a canalizá-la: “abjeto é uma força que obstrui e sufoca alguns afetos.”, “[…] o sentir constitui poder. O modo como as pessoas se sentem (afetivamente, emocionalmente) diante da diferença é basilar para a manutenção das fronteiras da normalidade.” (sofia favero, psicologia suja, 2023).


o que essas pessoas que dividem essa cama suja comigo vem me comunicando tem me ajudado a compreender como essas violências a partir da higienização normativa atravessaram e ainda atravessam meus afetos. o fato de ter buscado tanto um diagnóstico para essa sensação de inadequação e fracasso a minha vida toda é apenas um reflexo de um mundo que torna doente aquilo que difere de um ideal naturalizado através das linguagens de autoridade de algumas instituições, eu nunca encontrei um diagnóstico porque as violências cisheteronormativas, bem como aponta sofia, são inomináveis.


"não busco, tampouco, transformar essa experiência em algo prazeroso. uma vida que não passa pelo desprazer é uma vida aliada às mesmas cosmologias que temos buscado combater. aproximar as identidades trans dos afetos infames é fazer com que o real ganhe forma. o que nos movimenta adquira contorno. estamos disponíveis para explicar a transexualidade e passar a coproduzir com ela? a sujeira me ajuda a ter malícia para manejar a categoria, a olhar para o sofrimento e não ser invadida por ele. não habitar o sofrimento, não habitar a luta, não se convocar a estar nesse lugar. habitar a poluição. digerir o plástico. habito a monstruosidade como forma de deslocar obstruções sem recorrer a positivações superegóicas."

— sofia favero, psicologia suja, 2023